quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O que é desaposentadoria e qual o seu impacto?



Por Fernando B. Meneguin e Pedro Fernando Nery
A desaposentadoria (ou desaposentação) é o cancelamento de uma aposentadoria que está vigendo para pleitear uma nova. Com esse cancelamento, consideram-se novamente todos os anos de trabalho do passado, acrescidos às contribuições da manutenção da condição laboral após a primeira aposentadoria. O objetivo disso é conseguir um benefício melhor. A desaposentadoria é pleiteada por aqueles que se aposentam mas não param de trabalhar, recebendo simultaneamente o benefício de aposentado e a renda do trabalho, sobre a qual incide a contribuição previdenciária.
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não reconhece o direito dos aposentados em se desaposentar, pois considera impassível a renúncia do benefício. Além disso, argumenta que se a sistemática da desaposentadoria virar regra, haverá um enorme impacto prejudicial às contas da previdência.
O Poder Judiciário tem posicionamento diferente. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já confirmou, no ano passado, em julgamento de recurso repetitivo1, que o aposentado tem o direito de renunciar ao benefício para requerer nova aposentadoria em condição mais vantajosa, e que para isso ele não precisa devolver o dinheiro que recebeu da Previdência. Isso significa que a renúncia à aposentadoria, para fins de concessão de novo benefício, seja no mesmo regime ou em regime diverso, não implica o ressarcimento dos valores recebidos.
Para o STJ, os benefícios previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e, portanto, suscetíveis de desistência pelos seus titulares, dispensando-se a devolução dos valores recebidos da aposentadoria a que o segurado deseja renunciar para a concessão de novo e posterior benefício. A matéria deve entrar em breve na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 661.256, que ganhou repercussão geral. Em caso semelhante (Recurso Extraordinário nº 381.367), o ministro relator Marco Aurélio iniciou o julgamento votando a favor da desaposentadoria. No Legislativo, tramitam vários projetos de lei instituindo esse direito ou concedendo vantagens semelhantes2.
Cabe considerar, no presente tema, não apenas a questão jurídica, mas também todo o impacto econômico na sociedade. Ao se validar o instituto da desaposentadoria, contraria-se todo o esforço recente de se melhorar as contas da previdência.
É importante fazer um breve histórico sobre as recentes alterações previdenciárias. O Governo, na época da aprovação da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, não conseguiu incluir o limite de idade para aposentadorias na esfera do setor privado; no entanto, a mesma Emenda nº 20 abriu caminho para substancial inovação na metodologia de cálculo do salário-de-benefício dos segurados do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, operado pelo INSS. Calcado no novo dispositivo constitucional (art. 201), que explicita o caráter contributivo da previdência social e requer equilíbrio atuarial e financeiro do sistema, bem como na “desconstitucionalização” da regra de cálculo do valor dos benefícios, o Governo implantou o chamado “fator previdenciário”.
Tratou-se de iniciativa do Poder Executivo que, pressionado pela imprescindível adoção de medidas que permitissem o controle e contenção da tendência ascendente dos gastos previdenciários, enviou ao Congresso proposta de legislação ordinária que estabelecia, dentre outros aspectos, o chamado “fator previdenciário” no cálculo das aposentadorias. Tal projeto de lei, tendo tramitado em regime de urgência, foi aprovado, com pequenas modificações, em novembro de 1999, transformando-se na Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.
O fator previdenciário consiste na inserção, na fórmula de cálculo do salário-de-benefício, de um multiplicador que inclui a expectativa de sobrevida, a idade e o tempo de contribuição do segurado, ou seja, critérios atuariais que aumentam a correlação entre contribuição e benefício. Ademais, ao invés de considerar apenas os últimos três anos de contribuição como base para a fixação do valor da aposentadoria, como antes estabelecido na Constituição, o novo cálculo considera toda a vida laboral do trabalhador (a partir de julho de 1994).
Com o novo método, cada segurado passou a ter direito a receber um benefício calculado de acordo com a estimativa do montante de contribuições realizadas, capitalizadas por uma taxa determinada pelo tempo de contribuição e idade do segurado, bem como pela expectativa de duração do benefício.
É fundamental entender que a nova regra representa passo significativo em direção à construção de um sistema previdenciário equilibrado. Além de embutir em seu cálculo um fator atuarial – a expectativa de sobrevida por faixa etária – tende a equilibrar o fluxo de caixa do sistema previdenciário no curto e médio prazos. Isso porque o segurado que sair mais cedo, provocando um desembolso antecipado, receberá, em contrapartida, uma aposentadoria de menor valor.
Tal critério é justo. É razoável que aquele que opte por se aposentar por tempo de contribuição (35 anos para homens e 30 para mulheres) em idade precoce faça jus a benefício inferior a de outro que prefira se aposentar com idade mais elevada. Esse último, além de ter contribuído por maior período, deverá receber o benefício por menos tempo, sendo, justo, pois, que aufira uma renda mensal mais elevada que o primeiro.
Percebe-se, assim, que o fator previdenciário, embora não elimine o déficit existente, nem altere direitos adquiridos de aposentados, permite maior correlação entre salário-de-contribuição e salário-de-benefício para as novas aposentadorias. Ainda, representa grande avanço no sistema de repartição simples, profundamente afetado por mudanças demográficas. Com o aumento da expectativa de sobrevida da população, por exemplo, é necessário que limites de idade mínima sejam periodicamente repactuados com a sociedade. No entanto, na medida em que esta variável está presente no próprio cálculo do salário de benefício, os ajustes necessários serão automaticamente internalizados de modo que o sistema se mantenha equilibrado.
O instituto da desaposentadoria acaba com os benefícios do fator previdenciário para a saúde das contas previdenciárias. Com as regras criadas pelo Poder Judiciário, os beneficiários do INSS têm incentivo a se aposentarem cedo e continuar trabalhando, pois acumularão a renda da aposentadoria com o salário do trabalho não interrompido. Depois de anos recebendo a aposentadoria, quando conseguirem um fator previdenciário favorável, simplesmente pedem o cancelamento da aposentadoria e solicitam novo recálculo do benefício. O Ministério da Previdência Social (MPS) estimou em 2011 impacto de R$ 69 bilhões nas contas públicas a longo prazo caso a desaposentadoria fosse reconhecida pelo Supremo3.
Ora, mas não há cálculo atuarial que consiga equilibrar essa situação, pois, no período entre a primeira aposentadoria e o novo recálculo, o beneficiário já tinha gerado um ônus para o Estado, pois já estava recebendo uma renda pelo INSS. Para consolidar a desaposentação, o mais justo seria então o beneficiário devolver tudo o que recebeu a título de aposentadoria nesse intervalo.
Ademais, a desaposentadoria constitui grande injustiça com os trabalhadores e aposentados que, quando satisfizeram os critérios para pedir a aposentadoria por tempo de contribuição, optaram por não pleitear o benefício, trabalhando sem acumular a renda do trabalho com a aposentadoria. Esses trabalhadores se planejaram de acordo com a lógica do fator previdenciário, esperando anos para poder receber uma aposentadoria com valor maior. Naturalmente, esses trabalhadores e aposentados se sentem lesados com a possibilidade da desaposentadoria, já que receberiam benefícios iguais ao daqueles que se aposentaram muito antes, sem, no entanto, terem recebido a aposentadoria durante todos os anos nesse intervalo.
Assim, a discussão sobre a desaposentação remete ao grave problema das aposentadorias precoces no Brasil, decorrentes da possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição – que encontra paralelo em pouquíssimos outros países – e da ausência de idade mínima para quem se aposenta pelo INSS, problema que o fator previdenciário, embora não seja o ideal, conseguiu “remendar”. A idade mínima para a aposentadoria não é a regra apenas nos países ricos – como nos escandinavos em que chega aos 67 anos -, mas também em países emergentes, mais parecidos com o Brasil. México, Colômbia, Argentina, Chile, Peru e até El Salvador possuem idade mínima para aposentadoria de 65 anos4. A título de ilustração, a idade média de aposentadoria por tempo de contribuição das mulheres brasileiras no meio urbano é de apenas 52 anos5.
O fator previdenciário atenua essa situação, mas além de não resolver o problema, é mal compreendido pelos segurados, muitos dos quais pedem a aposentadoria por tempo de contribuição cedo. Sentem-se, porém, vitimados pelo “desconto” do fator, o que dá ensejo posteriormente às ações de desaposentadoria para corrigir a suposta injustiça.
Dessa forma, a má compreensão sobre o funcionamento do fator previdenciário faz com que esses aposentados genuinamente creiam que o INSS lhes deve valores, ou que os valores das contribuições feitas depois da “primeira” aposentadoria deveriam ser devolvidos. Logo, não se percebe que a relação entre o tempo de contribuição e o tempo de usufruto do benefício para os segurados do INSS é muito diferente da comparação internacional e que o regime de custeio escolhido para o INSS na Constituição não é o de capitalização – como o da previdência privada, em que o valor das contribuições é revertido em benefício – e sim o de repartição, em que o sistema financia os inativos com as contribuições daqueles que estão em atividade.
Merecem ser destacadas, ainda, as falhas em um argumento comumente usado a favor da desaposentadoria: a de que este direito existe para os servidores públicos (Regime Próprio de Previdência Social – RPPS) por meio do instituto conhecido como “reversão”. A reversão é muito diferente da desaposentadoria, já que o servidor não recebe ao mesmo tempo seu salário e a aposentadoria, deixando meramente de ser inativo para voltar a ser ativo, no exato mesmo cargo que ocupava antes. Ressalta-se ainda que a reversão está prevista em lei (não foi criação de tribunais), só pode ocorrer de acordo com o interesse da Administração e segundo outros critérios da Lei nº 8.112, de 1990, e que existe idade mínima para aposentadoria no RPPS (65 anos para homens e 60 para mulheres, sem fator previdenciário). Obviamente, isso não implica que os aposentados do RPGS estejam em situação mais confortável que os do RPPS, mas todas as características citadas tornam os institutos da reversão e da desaposentadoria muito diferentes.
O gráfico a seguir, produzido na Consultoria Legislativa do Senado, mostra a evolução, em termos reais, das principais séries de despesa e receitas públicas. Nota-se que a série que mais cresceu foi a que representa os gastos com o Regime Geral de Previdência Social. Essa foi a única série que superou o crescimento da Receita da União, mostrando como o Regime Geral é uma bomba ainda não controlada.
Enquanto em 2010, segundo o IBGE, havia 16 idosos com mais de 60 anos para cada grupo 100 brasileiros entre 15 e 19 anos, as projeções mais atualizadas indicam que essa relação aumentará, em menos de três décadas, para 52 a cada 1006. Levando em conta que o próprio Ministério da Previdência Social projetou um déficit do Regime Geral já da ordem R$ 50 bilhões em 2014, só é possível concluir que a situação da previdência ficará muito grave nos próximos anos, e institutos como a desaposentadoria reforçam esse quadro. Novamente segundo o MPS, mais de 700 mil segurados teriam hoje direito ao aumento de seus benefícios, contingente maior do que a população inteira de várias capitais do país.
O que se lamenta é uma falta de consciência da restrição orçamentária intertemporal na economia. A irresponsabilidade fiscal de hoje certamente causará problema para as gerações futuras do Brasil.
1 Recurso Especial nº 1.334.488.
2 Apenas no Senado tramitam os projetos de lei nos 464, de 2003; 214, de 2007; 56, de 2009; 91 de 2010; e 188, de 2011.
3 Constanzi (2011)
4 Cechin e Cechin (2007).
5 Giambiagi e Schwartsman (2014).
6 Giambiagi e Schwartsman (2014).
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Referências:
CECHIN, J.; CECHIN. A. “Desequilíbrios: causas e soluções”. In: Tafner, P. e Giambiagi, F. (org.). Previdência no Brasil – debates, dilemmas e escolhas. Ipea, 2007.
CONSTANZI, M. N. “Evolução e Situação Atual das Aposentadorias por Tempo de Contribuição”. Informe da Previdência Social, vol. 23, nº 8. Ministério da Previdência Social, 2011.
GIAMBIAGI, F.; SCHWARTSMAN, A. Complacência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.