No ano de 2010, ainda que tardiamente, o país –
através da lei 12.305 - instituiu sua Política Nacional de Resíduos Sólidos –
PNRS. Políticos brasileiros adoram engabelar eleitores fazendo-nos crer que os
problemas serão resolvidos na base da esferográfica. Assim, ante a gravidade de
uma questão qualquer, se regozijam editando uma nova lei e, num passe de
mágica, nos conduzem ao Éden perdido.
Nosso
regime legal é um dos mais anacrônicos do planeta, parece padecer da síndrome
da elefantíase. Dia após dia, legislatura após legislatura, batemos recorde
sobre recorde, inventando e reinventando leis, numa espiral viciosa, turbulenta,
perdulária e inteiramente ineficaz. Já falamos disso aqui no Blog. Aqui está: “Não precisamos de novas leis, precisamos de homens que
observem as já existentes”.
‘Governança’ deveria contemplar um
universo que, ao mesmo tempo, sorvesse e exalasse liderança, estratégia, empreendedorismo,
sustentabilidade, planejamento, controle,... insumos que alavancam a performance
da gestão, qualificam a formulação e a condução das políticas públicas, agregam
valor à prestação de serviços de interesse da sociedade, potencializam a transparência
e a comunicação nas relações governo/cidadania e cidadania/governo. Ocorre nos
países desenvolvidos. Mas no Brasil, bem... no Brasil, todos sabemos como
funcionam as coisas...
Por aqui, ‘governança’ se transfigurou num
vocábulo pérfido cujo significado original foi sequestrado; por aqui, ‘governança’
adquiriu acepção única e denota exclusivamente fazer leis, criar leis, redigir
leis, publicar leis, emendar leis, promulgar leis, ainda que inconstitucionais,
para, depois, quando assim declaradas, remendá-las, recriá-las, e de novo, e
novamente, e mais uma vez, e mais ‘n’ vezes...
Num Brasil onde os tributos são cobrados à la Dinamarca
e os serviços ofertados à la Zimbabue, as leis tomam ares de varinhas de condão
conduzindo-nos aos contos de fada. Os efeitos deletérios estão como os
experimentados pelos dependentes químicos: os sonhos e ilusões idílicas, as
sensações paradisíacas despencam terra abaixo tão logo os sintomas cessam, instante
em que a realidade explode numa erupção vulcânica, descortinando a crueza do
dia a dia na terra brasilis.
A inesgotável profusão de leis objetiva enganar,
fazendo-nos acreditar que os problemas estão solucionados. Efêmera a ilusão! Suficiente,
contudo, para embair quase todos... E não é só. Esse brutal frenesi legiferante
estabelece, no âmago do parlamento, um substrato que estimula o clientelismo; além
de estruturar, no mercado, alguns dos mais lucrativos negócios para os escritórios de
advocacia. E eis o país mergulhado num lodaçal de leis, decretos, resoluções, emendas,
códigos, pacotes e jurisprudências cuja consequência imediata é a incerteza
jurídica.
E, agora, quando tratamos de saneamento e manejo de
resíduos sólidos, como haveria de ser diferente? Convivemos num limbo entrecortado
pelo país-maravilha engendrado pelas leis salvacionistas e o país-real, o anão-ético-diplomático
que o mundo civilizado já desvelou.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) estabeleceu
que até 2 de agosto de 2014 os lixões a céu aberto estariam extintos. Determinou
este dia como a data fatídica para que os aterros sanitários redimissem a
vergonhosa onipresença dos lixões.
Não custa destacar: 2012 foi a primeira tentativa,
o primeiro prazo para a extinção dos lixões; era um ano de eleições municipais
e as sumidades do Ministério das Cidades acreditaram que por ser aquele um ano eleitoral, os
prefeitos não se engajariam, não dariam a devida atenção e prioridade à
questão. E, imaginaram, vamos dilatar o prazo para 2014. Alguém duvida que um
novo adiamento esteja a caminho?
Se este é um tema que não galvaniza a atenção dos
gestores municipais, quanto mais da sociedade... A população já tem um rol de
preocupações que a consome completamente: segurança, saúde, educação de
qualidade, transporte público,... Quando se trata da coleta de lixo
propriamente dita, ainda existe uma certa pressão popular, mas a sociedade se
satisfaz com a retirada do lixo da porta de suas residências, das proximidades
de seus locais de trabalho e estudo... não incorporou ainda a dimensão e a
extrema importância da destinação, os locais onde serão lançados e a forma como
serão manejados os resíduos sólidos. Quase que se contam nos dedos das mãos os
que sabem a diferença entre um aterro sanitário e o lixão a céu aberto e as
implicações que isso tem para o meio ambiente.
Como desdobramento da lei 12.305, as regras tornaram-se
severas para os municípios relapsos, os que solenemente ignoraram os prazos da norma:
as instituições públicas que descumpriram a nova política de tratamento do lixo
estão sujeitas ao pagamento de multas de até R$ 50 milhões.
Em 2008, o IBGE, através da Pesquisa Nacional de
Saneamento Básico, identificou 2.810 cidades que ainda destinam seus resíduos
sólidos para vazadouros a céu aberto. E isso não é pouco: representa mais da
metade dos municípios existente no país. Já a Confederação Nacional dos
Municípios (CNM), em levantamento de 2012, aponta a existência de, no mínimo,
3,5 mil lixões ativos no Brasil.
Quando se trata de indicadores sociais, a região
nordeste invariavelmente assume o pódium com as piores posições. Na área de
saneamento e destinação de resíduos sólidos, o quadro não se altera: a prática
dos lixões a céu aberto é adotada por 1.598 cidades nordestinas; pasmem, cerca
de 90% dos municípios nordestinos não contam com aterro sanitário.
Nas capitais o quadro é praticamente o mesmo. Para
se ter ideia da dimensão do problema: o maior lixão da América Latina é do
tamanho de 170 campos de futebol, se constitui numa verdadeira cordilheira de
lixo com 50 metros de altura, ‘manejado’ por 2 mil catadores de lixo que
trabalham diuturnamente, 24 horas por dia; onde fica?, a cerca de 15km do
Palácio do Planalto, exatamente em Brasília, na Capital Federal.
Estudos sobre o tema é o que mais existe. O que
parece não existir é disposição política para resolver o problema.
A Associação Brasileira de Limpeza Públicas e
Resíduos Especiais (Abrelpe) promoveu estudos mostrando que 40% de todo o lixo
produzido no Brasil tem destinação inadequada. Há ainda uma profusão de aterros
controlados, um Frankenstein, nem lixão e nem aterro sanitário, um coluna do
meio onde o chorume, embora que em menores proporções, continua sendo lançado
no solo; do ponto de vista ambiental, os aterros controlados não se diferenciam
muito do lixão; o chorume continua infiltrando no solo e contaminando o lençol
freático.
Quando gestores e prefeitos municipais atinaram que
o prazo para a desmobilização dos lixões havia expirado foi um show de
lamúrias, pirotecnias e lamentações. Alguns alegaram que a lei é por demais
severa, outros que os legisladores se lembraram da solução mas se esqueceram de
identificar a origem dos recursos orçamentários e financeiros.
É verdade que a questão não é tão simples como
parece, está envolta em certa complexidade, mas nada que escape à normalidade.
Sobretudo, para os municípios pequenos, o aterro sanitário ainda é uma saída
cara e de complexa gestão. Há que se estudar a viabilidade econômica e o aterro
sanitário se viabiliza mais adequadamente para demandas superiores a 300
toneladas diárias. Precisaríamos, assim, de municípios médios – com 200 a 300
mil habitantes - para tornar o custo por tonelada aterrada administrável. Não
se constrói um aterro sanitário com pás e enxadas. São necessários, além de um maquinário
específico, mão-de-obra qualificada. Portanto, os pequenos municípios, de fato,
necessitam do auxílio dos governados estadual e federal. Recursos financeiros
que não deram o ar da graça, é a realidade.
Entretanto, não bastam tão somente os recursos
financeiros. Tão importante quanto o financiamento dos projetos é qualificar os
processos de gestão, aprimorá-los, tornar habitual a habilidade de fazer mais e
melhor, com menos.
Um mecanismo importante que tem ficado à margem das
prioridades dos governos é a figura dos consórcios públicos intermunicipais. É
um importante instrumento de gestão já comum nos países desenvolvidos, mas
solenemente ignorado no Brasil. A possibilidade de compartilhar recursos, sejam
maquinários, sejam de pessoal, mitigaria os custos, tornaria a operação menos
onerosa para os pequenos municípios. Porém, ainda assim, esta não é uma solução
para todos palatável, porque há um componente que exige certa engenharia
criativa, o equacionamento do problema das distâncias. Diversos vetores devem
ser devidamente equalizados para que a participação nos custos seja equilibrada
entre os municípios consorciados. Localização
e volume dos resíduos a serem manejados
são dois dos mais importantes vetores. Em decorrência, os custos variam
dependendo da região. No Sul/Sudeste, as distâncias são menores, o que implica
menores custos. Nas regiões Nordeste e Centro-oeste as distâncias entre um
município e outro, não raro, chegam a 300 km. No Norte, trabalha-se com
distâncias estratosféricas. Altamira, por exemplo, tem uma área de 159 695,938
km², uma área maior que a Grécia.
A arte literária de Augusto de Campos
Fatores não menos importantes são as rivalidades
políticas entre as cidades, condição que contribuem para mantê-las isoladas
umas das outras, desdenhando as formas mais modernas e eficazes de conjugar
esforços e recursos.
Como ensino o antigo ditado, muita água ainda
correrá sob a ponte. Políticos continuarão propalando que o assunto é da alçada
de marcianos; gestores continuarão apostando em planejamento de araque; leis
continuarão sendo editadas, emendadas e reeditadas num ciclo infindável; prazos
e cronogramas continuarão sendo estendidos; e os lixões continuarão em plena
operação, alçados à condição de impolutos... a não ser que a sociedade aprimore
seus mecanismos de pressão e fiscalização e, principalmente, qualifique o seu
voto.
Antônio Carlos dos Santos, criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular Mané Beiçudo.