quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Em Brasília, o maior lixão da América Latina!


No ano de 2010, ainda que tardiamente, o país – através da lei 12.305 - instituiu sua Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS. Políticos brasileiros adoram engabelar eleitores fazendo-nos crer que os problemas serão resolvidos na base da esferográfica. Assim, ante a gravidade de uma questão qualquer, se regozijam editando uma nova lei e, num passe de mágica, nos conduzem ao Éden perdido.

Nosso regime legal é um dos mais anacrônicos do planeta, parece padecer da síndrome da elefantíase. Dia após dia, legislatura após legislatura, batemos recorde sobre recorde, inventando e reinventando leis, numa espiral viciosa, turbulenta, perdulária e inteiramente ineficaz. Já falamos disso aqui no Blog. Aqui está: “Não precisamos de novas leis, precisamos de homens que observem as já existentes”.

Governança’ deveria contemplar um universo que, ao mesmo tempo, sorvesse e exalasse liderança, estratégia, empreendedorismo, sustentabilidade, planejamento, controle,... insumos que alavancam a performance da gestão, qualificam a formulação e a condução das políticas públicas, agregam valor à prestação de serviços de interesse da sociedade, potencializam a transparência e a comunicação nas relações governo/cidadania e cidadania/governo. Ocorre nos países desenvolvidos. Mas no Brasil, bem... no Brasil, todos sabemos como funcionam as coisas...

Por aqui, ‘governança’ se transfigurou num vocábulo pérfido cujo significado original foi sequestrado; por aqui, ‘governança’ adquiriu acepção única e denota exclusivamente fazer leis, criar leis, redigir leis, publicar leis, emendar leis, promulgar leis, ainda que inconstitucionais, para, depois, quando assim declaradas, remendá-las, recriá-las, e de novo, e novamente, e mais uma vez, e mais ‘n’ vezes...

Num Brasil onde os tributos são cobrados à la Dinamarca e os serviços ofertados à la Zimbabue, as leis tomam ares de varinhas de condão conduzindo-nos aos contos de fada. Os efeitos deletérios estão como os experimentados pelos dependentes químicos: os sonhos e ilusões idílicas, as sensações paradisíacas despencam terra abaixo tão logo os sintomas cessam, instante em que a realidade explode numa erupção vulcânica, descortinando a crueza do dia a dia na terra brasilis.


A inesgotável profusão de leis objetiva enganar, fazendo-nos acreditar que os problemas estão solucionados. Efêmera a ilusão! Suficiente, contudo, para embair quase todos... E não é só. Esse brutal frenesi legiferante estabelece, no âmago do parlamento, um substrato que estimula o clientelismo; além de estruturar, no mercado, alguns dos mais  lucrativos negócios para os escritórios de advocacia. E eis o país mergulhado num lodaçal de leis, decretos, resoluções, emendas, códigos, pacotes e jurisprudências cuja consequência imediata é a incerteza jurídica.

E, agora, quando tratamos de saneamento e manejo de resíduos sólidos, como haveria de ser diferente? Convivemos num limbo entrecortado pelo país-maravilha engendrado pelas leis salvacionistas e o país-real, o anão-ético-diplomático que o mundo civilizado já desvelou.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) estabeleceu que até 2 de agosto de 2014 os lixões a céu aberto estariam extintos. Determinou este dia como a data fatídica para que os aterros sanitários redimissem a vergonhosa onipresença dos lixões.

Não custa destacar: 2012 foi a primeira tentativa, o primeiro prazo para a extinção dos lixões; era um ano de eleições municipais e as sumidades do Ministério das Cidades acreditaram  que por ser aquele um ano eleitoral, os prefeitos não se engajariam, não dariam a devida atenção e prioridade à questão. E, imaginaram, vamos dilatar o prazo para 2014. Alguém duvida que um novo adiamento esteja a caminho?

Se este é um tema que não galvaniza a atenção dos gestores municipais, quanto mais da sociedade... A população já tem um rol de preocupações que a consome completamente: segurança, saúde, educação de qualidade, transporte público,... Quando se trata da coleta de lixo propriamente dita, ainda existe uma certa pressão popular, mas a sociedade se satisfaz com a retirada do lixo da porta de suas residências, das proximidades de seus locais de trabalho e estudo... não incorporou ainda a dimensão e a extrema importância da destinação, os locais onde serão lançados e a forma como serão manejados os resíduos sólidos. Quase que se contam nos dedos das mãos os que sabem a diferença entre um aterro sanitário e o lixão a céu aberto e as implicações que isso tem para o meio ambiente.

Como desdobramento da lei 12.305, as regras tornaram-se severas para os municípios relapsos, os que solenemente ignoraram os prazos da norma: as instituições públicas que descumpriram a nova política de tratamento do lixo estão sujeitas ao pagamento de multas de até R$ 50 milhões.

Em 2008, o IBGE, através da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, identificou 2.810 cidades que ainda destinam seus resíduos sólidos para vazadouros a céu aberto. E isso não é pouco: representa mais da metade dos municípios existente no país. Já a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), em levantamento de 2012, aponta a existência de, no mínimo, 3,5 mil lixões ativos no Brasil.

Quando se trata de indicadores sociais, a região nordeste invariavelmente assume o pódium com as piores posições. Na área de saneamento e destinação de resíduos sólidos, o quadro não se altera: a prática dos lixões a céu aberto é adotada por 1.598 cidades nordestinas; pasmem, cerca de 90% dos municípios nordestinos não contam com aterro sanitário.

Nas capitais o quadro é praticamente o mesmo. Para se ter ideia da dimensão do problema: o maior lixão da América Latina é do tamanho de 170 campos de futebol, se constitui numa verdadeira cordilheira de lixo com 50 metros de altura, ‘manejado’ por 2 mil catadores de lixo que trabalham diuturnamente, 24 horas por dia; onde fica?, a cerca de 15km do Palácio do Planalto, exatamente em Brasília, na Capital Federal.

Estudos sobre o tema é o que mais existe. O que parece não existir é disposição política para resolver o problema.


A Associação Brasileira de Limpeza Públicas e Resíduos Especiais (Abrelpe) promoveu estudos mostrando que 40% de todo o lixo produzido no Brasil tem destinação inadequada. Há ainda uma profusão de aterros controlados, um Frankenstein, nem lixão e nem aterro sanitário, um coluna do meio onde o chorume, embora que em menores proporções, continua sendo lançado no solo; do ponto de vista ambiental, os aterros controlados não se diferenciam muito do lixão; o chorume continua infiltrando no solo e contaminando o lençol freático.

Quando gestores e prefeitos municipais atinaram que o prazo para a desmobilização dos lixões havia expirado foi um show de lamúrias, pirotecnias e lamentações. Alguns alegaram que a lei é por demais severa, outros que os legisladores se lembraram da solução mas se esqueceram de identificar a origem dos recursos orçamentários e financeiros.

É verdade que a questão não é tão simples como parece, está envolta em certa complexidade, mas nada que escape à normalidade. Sobretudo, para os municípios pequenos, o aterro sanitário ainda é uma saída cara e de complexa gestão. Há que se estudar a viabilidade econômica e o aterro sanitário se viabiliza mais adequadamente para demandas superiores a 300 toneladas diárias. Precisaríamos, assim, de municípios médios – com 200 a 300 mil habitantes - para tornar o custo por tonelada aterrada administrável. Não se constrói um aterro sanitário com pás e enxadas. São necessários, além de um maquinário específico, mão-de-obra qualificada. Portanto, os pequenos municípios, de fato, necessitam do auxílio dos governados estadual e federal. Recursos financeiros que não deram o ar da graça, é a realidade.

Entretanto, não bastam tão somente os recursos financeiros. Tão importante quanto o financiamento dos projetos é qualificar os processos de gestão, aprimorá-los, tornar habitual a habilidade de fazer mais e melhor, com menos.

Um mecanismo importante que tem ficado à margem das prioridades dos governos é a figura dos consórcios públicos intermunicipais. É um importante instrumento de gestão já comum nos países desenvolvidos, mas solenemente ignorado no Brasil. A possibilidade de compartilhar recursos, sejam maquinários, sejam de pessoal, mitigaria os custos, tornaria a operação menos onerosa para os pequenos municípios. Porém, ainda assim, esta não é uma solução para todos palatável, porque há um componente que exige certa engenharia criativa, o equacionamento do problema das distâncias. Diversos vetores devem ser devidamente equalizados para que a participação nos custos seja equilibrada entre os municípios consorciados. Localização e volume dos resíduos a serem manejados são dois dos mais importantes vetores. Em decorrência, os custos variam dependendo da região. No Sul/Sudeste, as distâncias são menores, o que implica menores custos. Nas regiões Nordeste e Centro-oeste as distâncias entre um município e outro, não raro, chegam a 300 km. No Norte, trabalha-se com distâncias estratosféricas. Altamira, por exemplo, tem uma área de 159 695,938 km², uma área maior que a Grécia.

A arte literária de Augusto de Campos
                                       
Fatores não menos importantes são as rivalidades políticas entre as cidades, condição que contribuem para mantê-las isoladas umas das outras, desdenhando as formas mais modernas e eficazes de conjugar esforços e recursos.

Como ensino o antigo ditado, muita água ainda correrá sob a ponte. Políticos continuarão propalando que o assunto é da alçada de marcianos; gestores continuarão apostando em planejamento de araque; leis continuarão sendo editadas, emendadas e reeditadas num ciclo infindável; prazos e cronogramas continuarão sendo estendidos; e os lixões continuarão em plena operação, alçados à condição de impolutos... a não ser que a sociedade aprimore seus mecanismos de pressão e fiscalização e, principalmente, qualifique o seu voto.

Antônio Carlos dos Santos, criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular Mané Beiçudo.